…nos anos, desde que lutámos naquela maldita guerra da Guiné, nós pelo menos, quase todos os dias sintimos um certo tipo de “arrepio” a picar-nos a pele, às vezes, passamos dias de reflexão e pensamentos, dos amigos que por lá cairam. Homens como o “Zargo”, o “Curvas, alto e refilão”, ou o “Bóia”, como carinhosamente o chamáva-mos, que foi morto por uma maldita carga explosiva, numa ponte armadilhada, que existia para os lados de Porto Gole.
Lembramo-nos, daquele tempo escuro, mesmo depois da guerra, que para nós, durou vários anos, a nossa alma parecia que tinha sido baleada em pedaços, pelas coisas que vimos, pelas coisas que cheiráva-mos, pelo isolamento forçado e angustioso, pelas coisas que fizemos e, pelas coisas que nunca tivémos oportunidade de fazer, mas que deviam ser feitas, naquela idade tão jovem. Lembramo-nos de como a vida se tornava de alguma forma menor, à medida que nos isoláva-mos sistematicamente, daqueles que nós amáva-mos.
Enfim, “lembranças” de irmãos de guerra, que agora, anos mais tarde, o nosso pensamento, encontra todos os dias.
Este começo de ano, as coisas estão a parecer-nos um pouco diferentes, pois por alguns momentos vamos returnar à personagem “Cifra” e, aquela personagem, que naquele tempo se chamava “Zargo”, hoje é o nosso amigo Jorge, que está a viver por aqui, na Florida, pelo menos uns meses, portanto encontramo-nos, falando também de guerra, mas raras vezes, pois a sua dedicada esposa, assim que houve falar em guerra, logo nos diz, “please, stop fighting with your thought”, que quer dizer mais ou menos, “por favor, parem de lutar com o vosso pensamento”!.
Mas vamos à história, portanto cá vai, era manhã, havia que colocar um leve casaco nos ombros, pois a temperatura assim o recomendava, estáva-mos do outro lado da Flórida, na parte oeste, no Golfo do México.
A “Europa” andava por lá, aliás, por aqui, de uma maneira ou de outra, tudo nos mostra que as raízes vieram da “Europa” e, as pessoas responsáveis pelos municípios, continuam a ter orgulho nessas raízes, admiram e fazem de algumas personagens europeias, os seus heróis.
…em 1982, um armazém de marinha no centro da cidade marítima de St. Petersburg, no estado da Florida, foi reabilitado e um museu foi inaugurado, eram umas instalações frequentemente sujeitas a furacões de um clima tropical, mas no ano de 2008, depois de uma chamada de atenção quase a nível nacional, Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol, conhecido no mundo das artes, apenas como Salvador Dalí, que foi um importante pintor catalão, conhecido pelo seu trabalho “surrealista”, tinha finalmente o seu museu.
Mais de cinquenta anos depois, o “Zargo”, nome de guerra do nosso companheiro de luta na Guiné, quando nós, éramos única e simplesmente o “Cifra”, dizia-me, “estas instalações, são comparáveis a um forte antigo, mas com linhas modernas e, algo surrealistas”!.
Foi construído na margem da baía, próximo do Teatro Mahaffey, na parte baixa da cidade, numa estrutura que apresenta uma grande porta de entrada em vidro em forma de triângulos, que por sua vez formam circulos, por onde entra a luz natural, feito de vidro de 1,5 polegadas de espessura, a que deram o nome de “Enigma”, pois esta porta de entrada de vidro tem 75 metros de altura que engloba uma escada em espiral, que nos conduz ao tal “enigma”!.
As restantes paredes são compostas de concreto de espessura de 18 polegadas, projectado para proteger esta valiosa colecção dos frequentes furacões que assolam a baía, onde se inclui 96 pinturas a óleo, mais de 100 aquarelas e desenhos, 1.300 ilustrações, fotografias, esculturas e objectos de arte, e uma extensa biblioteca de arquivo.
…entre outras pinturas, está lá, “The Hallucinogenic Toreador”, que é uma pintura a óleo, que Salvador Dalí em 1970, seguindo os cânones da sua interpretação particular de pensamento surrealista, transmite o desagrado de sua esposa para as touradas, através da combinação de simbolismo com ilusões de ótica e alienando ainda motivos familiares, ele cria a sua própria linguagem visual, está lá a aplicação do método paranóico-crítico, dentro desta pintura combina as imagens versáteis como um exemplo elucidativo da sua criação artística, onde uma poça de sangue se transforma numa baía abrigada, onde uma figura humana é uma jangada amarela, vista no horizonte!.
O “Zargo”, ria-se ao ouvir alguém ao nosso lado comentar, “a lot of drugs”, que quer dizer mais ou menos “muita droga”!.
As pinturas de Dalí chamam a atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, com excelente qualidade artística e, tanto para nós, que era o “Cifra”, ou para o Jorge, que era o “Zargo”, que muitas vezes estáva-mos sobre influência em cenário de guerra, talvez “deambulando” por outros horizontes, que nos ajudava a viver aquela terrível guerra, apreciamos a arte de Dalí, que dizem que foi influenciado pelos “mestres do Renascimento”!.
Dalí insistia na sua “linhagem árabe”, alegando que os seus antepassados eram descendentes de mouros, que ocuparam parte da Península Ibérica por quase 800 anos, afinal, tal como um qualquer “Zargo” ou “Cifra” e, atribuía isso ao seu amor por tudo o que é desejado com alguma fantasia, também tal como nós, que vivemos uma guerra em África, fugindo depois para o continente América, na procura do desejado, que muitos de nós nunca encontrámos!.
Voltando à guerra que nós vivemos, torna-se um pouco claro, que o custo de uma guerra é ainda maior do que nós póssamos imaginar, porque a guerra tem um apetite insaciável pela morte, que ainda hoje, continua a matar pessoas, mesmo muito tempo depois de terminar e, continua a fazer vítimas, não só em quem participou activamente na mesma, pois as pessoas começam com sentimentos de confusão, depois move-as um longo pensamento de raiva e, finalmente vem a indiferença, mas aquele esgotamento escuro e emocional ainda se encontra de pé, mesmo à beira de um abismo, convidando-nos a saltar, pensando que com essa estúpida atitude, todos os sentimentos vão acabar.
Háaa…, já chega de guerra e de confusões, vamos fazer como o Dalí, “viver o nosso mundo surrealista”, contudo quero lembrar que, com a excepção do Teatro-Museu Dalí, criado pelo próprio Dalí na sua cidade natal de Figueres, Catalunha, Espanha, o “Dalí Museum”, na cidade de St. Petersburg, no estado da Florida, estão as maiores coleções do mundo, de Salvador Dalí.
Tony Borie, March 2015